sábado, 17 de abril de 2010

Licença Poética


A primeira vez que o vi foi a conta. Ele estava de costas. E antes mesmo de virar de frente eu já me sentia estremecida. Quando seus olhos de peixe fitaram meus olhos de ansiedade, em pleno ato de covardia, desviei o olhar. Era demais pra mim. Poderia cair no chão. As pernas bambas. E dele veio o sorriso aberto de quem sabe o poder que tem. Desarmou-me ainda mais.
É mentira. Não foi nada assim. Estou usando o que ele me ensinou: a tal de licença poética. Poderia ter sido assim, não poderia? É claro. Mas foi melhor. Ele estava de blusa verde. E eu de botas. Em pleno Rio de Janeiro. Tudo bem! Estava frio. Mas carioca marrento devia estar me chamando de “paraíba” por dentro.
Ele segurava uma plaquinha no aeroporto. Dizia: sou poeta. E ele é mesmo. Mas não escreve poesia, pelo menos não em versos. Escreve prosa. Poesia ele é mesmo bom na hora de recitar. Nunca ouvi dígrafos tão sonoros. Arrepia do fio de cabelo (sem pontas duplas) da cabeça até o dedo mindinho (pintado de “renda”) do pé.
Mesmo sabendo que ele não era bem o tipo de homem que eu estava acostumada a conhecer, resolvi bancar a história. Saber qual é. Nunca imaginei que estaria descobrindo o pote de ouro no final do arco-íris. Que a embriaguez através da virtude é mais poderosa que absinto.
E ele sempre foi tão romântico... Segurava a plaquinha e me surpreendeu com uma rosa vermelha, escondida no bando de trás do carro. Dá pra acreditar? Logo uma rosa! Eu que como Mrs. Dalloway “as únicas flores que suporto ver cortadas são as rosas.”
E as demonstrações de gentileza não pararam por aí. Ele abriu a porta do carro. Carregou a minha mala. Aliás, ele me carregou no colo pra eu não sujar a sola das botas. Confesso que achei a atitude meio exagerada, mas também interpretei como uma forma de manter um contato físico logo de imediato.
No meio da viagem paramos para tomar um café. E ele é sedutor em tudo que faz. Ele beija a xícara ao sorver o líquido. Seu lábio inferior envolve toda a porcelana, como se quisesse engolir o objeto. Que inveja essas xícaras me causam. Ele é a minha xícara. Sou capaz de beijá-lo a vida inteira, até faltar o ar. Mas aí eu paro um instante. Não quero asfixiá-lo.
Quando estamos juntos os dias são sempre ensolarados. Na temperatura certa. O sol aquecendo a alma, deixando a pele transpirar e o cheiro de maresia que ele carrega desde menino exalar pelos poros.
Ele sabe que eu gosto de andar de mãos dadas. E fazemos isso sem parcimônia. Mãos dadas no shopping. Mãos dadas em casa. Mãos dadas, dedos entrelaçados, nada de mão folgada que segura a outra só para atravessar a rua ou rezar o “Pai Nosso” na igreja. Atravessamos o mapa sem soltar as mãos. Rezamos o credo para afastar os maus pensamentos.
Assim é a nossa vida. Desde aquele dia incerto de agosto. Ele sempre conversa comigo sobre os planos que estão tomando forma naquela cabeça genial e mirabolante. Eu sempre escarro em cima dele minhas intempéries do cotidiano. Embrulho nossas melhores lembranças através do olfato. E toda vez que a saudade aperta, abro o frasco e capricho na inalação.
Mas nós fazemos tudo com suavidade. Com leveza. Ele com as tais das elipses. E eu agora, aprendendo a licença poética.