domingo, 21 de março de 2010

"O Marido Perfeito Mora ao Lado"


Um livro pra ler de um fôlego só
Por Karla Albuquerque

Uma história de amor, com ritmo de suspense, otimismo e didática. Para quem tem curiosidade sobre psicanálise, o novo livro do jornalista Felipe Pena é um prato cheio. A começar pelos títulos dos capítulos que sugerem temas como libido, ansiedade e sublimação, e também pelo fato de o enredo ser ambientado em uma universidade particular, especificamente no curso de psicologia.
Mas não são apenas os amantes de Freud que vão se deliciar com este romance. A linguagem simples, porém arrojada, característica do autor, leva o leitor a uma viagem para dentro de si mesmo. Eis o enredo: um casal procura a terapia para tentar compreender as desavenças e os desafios da vida a dois. Então, somos apresentados ao discurso autoritário da personagem Olga, que sufoca o marido Carlinho disparando queixas e palavras rancorosas, o que traz para nós, mulheres, uma reflexão sobre atitudes muitas vezes automáticas que tomamos diante de questões triviais como o chope com os amigos ou o futebol do final de semana. Daí ocorre um crime. E os terapeutas farão o papel de investigadores.
Também temos a volta do anti-herói do livro anterior “O analfabeto que passou no vestibular”. Antônio Pastoriza, o psicanalista que aguça a curiosidade das meninas da faculdade, está de volta ao mundo acadêmico, depois de uma temporada de dedicação à literatura na Espanha. E logo que retoma a vida no Rio de Janeiro, Pastoriza se vê diante desse crime, o sequestro de um estudante. O evento mobiliza todos os amigos e familiares do rapaz, que namorado da aluna mais velha do curso de psicologia, a bela de olhos verdes e canelas finas Nicole.
O livro trata de relações interpessoais, traça um panorama do envolvimento de garotos e garotas da classe alta carioca com os grandes figurões de tráfico de drogas, mas não deixa de retratar histórias de amor, como o próprio escritor gosta de enfatizar “Toda história, é uma história de amor.” Com uma escrita ágil e estratégias que despertam a curiosidade do leitor a cada término de capítulo, quem desfrutar da nova obra de Felipe Pena não vai conseguir parar de ler até descobrir quem são as personagens e quais são seus verdadeiros significados na trama, além de ter a chance de fazer uma auto-análise com conceitos psicanalíticos muito bem explicados no decorrer do texto.
Outro ponto alto são as cenas de volúpia descritas entre um casal de professores da universidade e as próprias aventuras sexuais de Pastoriza. A imaginação do leitor é capaz de sofrer arrepios, mas tudo muito humanizado, com os clichês que só a vida real pode proporcionar.
As trezentas páginas deste novo romance não apenas atestam todo o talento e criatividade do autor, mas são um presente para quem lê e consegue enxergar as fantasias, os desejos e anseios que estão nas personagens, mas que no fundo, poderiam estar (e me arrisco a afirmar, que muitas estão) escondidas ou reprimidas em nosso inconsciente ou mesmo no consciente.
Você começa a ler achando que sabe o que provavelmente vai acontecer no final, mas a cada nova página virada a dúvida se instala, a curiosidade aflora e o desejo de conhecer o desfecho não nos deixa outra saída: mergulhar nesta leitura elegante, democrática e porque não...perfeita.

terça-feira, 2 de março de 2010

O primeiro encontro



O encontro foi decisivo. Do tipo ou vai ou racha. Foi. Descobriram afinidades em questões de minutos e com uma garrafa de champagne na conta. Escolheram como local do primeiro "face to face" um casebre na montanha. Ele devia lembrar-se das histórias de Victor Hugo. Ela riu de canto pensando no Best-seller “A cabana” que acabara de ler. Ele falava das experiências vividas pela Europa. Ela contava do último relacionamento com um cara doente de ciúmes. Riam juntos. Ela tinha bom humor e ele esbanjava perspicácia. Todo o nervosismo daquela primeira troca, se transformava em euforia a cada peculiaridade revelada. “Totalmente diferente do que eu esperava!” – ela pensou. Sim, porque nós mulheres continuamos acreditando em contos de fada, no príncipe encantado, mas é mais fácil acreditar no cafajeste sincero, que confessa que “foi um deslize” e se deixar ruborizar diante de um homem sensível e heterossexual.
A primeira coisa que ela notou foi os braços fortes que ele tinha. Como teria conseguido aqueles músculos? Ele não dava indícios de ser um freqüentador de academias. Ela fez questão de olhar todos os pertences dele, cada vez que o rapaz ia ao banheiro. Livros de poesia, CD de ópera, e um casaco de couro fashion que também apontava que aquele era um ser atípico.
Os olhos daquele homem que ela muito já ouvira o nome, mas nunca fez parte de seu imaginário escondiam o fundo do mar. Olhos de peixe. Vivo, e bem vivo. Daqueles que conhecem as profundezas das águas e dormem sempre abertos. Ela poderia ficar horas perdida naqueles olhos. O transe só era desfeito quando ele dizia: “Me conta o que você está pensando.”
No que mais ela poderia pensar? O que mais ela poderia querer? Só a lua, que não se fez de rogada e testemunhou as duas noites do casal. Sim, mal se conheciam e já formavam um casal. Dividiam o mesmo banheiro. A mesma cama. Deitaram na mesma rede.
Durante o primeiro beijo ela mal conseguia se concentrar no movimento circular das línguas. Surpresa. Estupefata. Haja fôlego! Como ele beijava bem! E que cheiro bom exalava de seus poros. Àquela altura, já bem suados.
Foram dois dias de sorrisos, conversas, confidências e muita umidade. No final de tudo, não havia a promessa do reencontro. Apenas a despedida. Na volta para casa os sentimentos de felicidade e ausência começavam a gritar dentro dela. Quando ela o veria novamente? Será que ele também compartilhava de tamanha emoção? O que fazer se não houvesse outra rede? Outra cama? Uma nova troca de olhares?
Ela não tinha as respostas. Apenas as indagações. Só uma coisa era certa: “ a vida sem aquele homem seria uma eterna estiagem.”

segunda-feira, 1 de março de 2010

A vida que todo mundo vê...

Esta é uma tentativa de resgatar a essência do blog. Criei o repórter franjinha em meados de 2008 quando comecei minha carreira na reportagem. Antes meus olhos eram de claustro, presos à rotina da redação, onde muitas vezes boas pautas surgem, mas são originadas de telefonemas, e-mails de assessorias, denúncias e rondas.
Na rua é diferente. Na rua você se aproxima das pessoas e da realidade de cada um. Você enfia o pé na lama, literalmente. Chega a ser emocionante e ao mesmo tempo uma baita responsabilidade a percepção da mudança de olhares sem esperança, quando avistam a equipe de reportagem.
Pois bem, ontem de madrugada fui cumprir uma missão. Mais de 100 barracas de quase 600 camelôs foram retiradas da frente de um shopping Center de Belém. Tá, bom. Os caras deixavam a cidade mais feia e ocupavam quase toda a extensão das calçadas. Ou seja, o pedestre tinha que viver se arriscando pelo meio fio. Por isso quem tomou a dianteira da operação foi a Polícia Rodoviária Federal. Em uma recente pesquisa divulgada até no Jornal Nacional, o trecho que vai do KM 0 ao KM10 da BR-316 e começa em Ananindeua (região metropolitana de Belém) é o campeão no número de acidentes no país.
Estatística cruel, não? Também não gostei de saber que lideramos esse ranking. Mas, a história dos camelôs desemboca em outro problema. Histórias tristes como a do Seu Januário de 54 anos, com seis filhos pra criar e que tinha como única fonte de renda a barraca de balas e chicletes que foi destruída durante a ação desta madrugada.
Fui entrevistar o seu Januário. Ele no início estava arredio, constrangido com a presença dos guardas municipais e suas armas e escudos em punho. O seu Januário repetia aos gritos “Minha mãe me ensinou a trabalhar! Ela não me ensinou a roubar!” Para uma imprensa sensacionalista seria o que chamamos de um belo SOBE SOM para a matéria. Pra mim, coração mole, manteiga derretida e declaradamente fã do jornalismo literário, Seu Januário era mais que personagem de um VT. Era o protagonista de uma lição de vida. O meu incentivo a voltar a escrever neste blog.
Cheguei perto, segurando firme o microfone e travando a mandíbula como sempre faço quando tenho vontade de chorar, e fiz as perguntas triviais para usá-lo na minha matéria, e no final, saiu um “E agora, José?” “E agora, Januário?” Lembrei rapidamente de um xote que fala para um tal Luís, respeitar Januário. Ninguém respeitou seu Januário. Ele respondeu a minha pergunta com a voz embargada, os olhos vermelhos encharcados de lágrimas, que ele não mais pode conter e deixou que escorressem pelo rosto cansado... ”Deus é quem vai saber.” Ele me disse.
Vários ambulantes que assistiam a entrevista aplaudiram seu Januário. Olhei a minha volta e muitos também choravam. A minha vontade era dizer para aquele senhor que em todo o momento olhou fundo nos meus olhos, sem desviar a atenção, que tudo iria ficar bem.
Mas eu não tenho essa resposta. A Secretaria de Economia Municipal também não tem essa resposta. Nos livramos de um problema. Mas para 600 pessoas o mês de março será sinônimo de incerteza. Por enquanto não há nenhum projeto de remanejamento destes vendedores ambulantes, para nenhuma espécie de camelódromo ou shopping popular.
Não sei como foi o almoço ou a janta do Seu Januário hoje. Mas na hora que eu deitar para dormir, posso esquecer de rezar por ele, porque a gente esquece até de quem é da nossa família, mas os olhos de fé e de desespero daquele homem ficarão por muito tempo na minha lembrança.


* O título faz alusão ao livro da Eliane Brum "A vida que ninguém vê" que conta histórias de personagens que ela encontrou na rotina da rua.