quinta-feira, 9 de junho de 2011

Eu tenho peito!




Jornalista é bicho esquisito mesmo. Quem atua na reportagem então, nem se fala. Tem que ter peito pra encarar. Depois que me formei há cinco anos tive a oportunidade de ter contato com alguns acadêmicos do curso. Em uma das vezes participei de uma aula de telejornalismo na Universidade Federal Fluminense, em Niterói – RJ. Foi uma espécie de bate-papo em que alguns vídeos meus foram exibidos e eu comentava sobre as matérias. Claro que eu fiquei me sentindo. Me sentindo mais velha, mais experiente e mais burra. Burra sim, porque depois que entramos na rotina frenética de uma redação é difícil manter um ritmo de leituras e o nível intelectual elevado. Surge aquele arrependimento de que deveria ter prestado mais atenção durante as aulas na faculdade. Saudade dos fichamentos, dos seminários e da cara de surpresa das pessoas, pois modéstia à parte cultivei boas notas desde o jardim de infância.
Faça um mestrado! Grita uma voz na minha consciência e outra lá da cozinha que deve ser a minha mãe. Tenho a vontade. Me falta a coragem. Pelo menos tento guardar um tempo nos raros finais de semana de folga para me deleitar de literatura brasileira e sempre tenho na cabeceira algum livro de poesia, até para acalmar a mente depois de um dia estressante.
Optei pelo jornalismo iludida com o glamour e o poder da televisão. O glamour, desde já eu garanto que não existe. Entrar na casa das pessoas todos os dias através da telinha não é nada simples como muitos podem pensar. Todo mundo rala muito. Quase todo mundo tem, teve ou terá gastrite nervosa. Você sai da redação com o cabelo escovado e maquiada e volta totalmente acabada, digna de um filme de terror. Todo jornalista leva chá de cadeira. Muitos são xingados. E as pérolas podem ir de “gostosa” até “filha da puta”.
Outro dia eu apanhei de um médico. Somos obrigados a fazer perguntas óbvias e até idiotas. Mas é o nosso trabalho. O cara estava nervoso. Eu perguntei: “O senhor é médico?” Ele empurrou o microfone contra o meu peito. Na hora achei que iria precisar de prótese pra reconstituir meu seio. Não chegou a tanto. Ufa.
Só que tudo isso faz parte da dor e da delícia de trabalhar com o inusitado. Um dia posso falar sobre falta d’água e tentar ajudar uma comunidade que sofre com a falta de uma necessidade e um direito básico. No outro posso estar diante de um assalto com adolescentes apontando a arma para cabeça de pessoas que poderiam ser meus parentes, seus parentes, pessoas a quem chamamos de personagens.
Vida louca, né? Mas depois de dois anos na reportagem cheguei à conclusão de que não fui eu quem escolheu o jornalismo. Ele me escolheu. Não posso ouvir sirenes de ambulância ou polícia. Acidente? Assalto? Não posso presenciar infrações no trânsito. Não posso ouvir a frase “eu quero a imprensa”. Odeio trabalhar nos feriados, mas não me imagino curtindo um dia livre no meio da semana.
Às vezes saio de casa e minha mãe pergunta: Vai fazer o quê hoje? Não sei. Nunca tenho a resposta. O inesperado me espera. O desconhecido me atrai. Seja de madrugada ou no sol quente do meio-dia o que me encanta é a dança das palavras surgindo no papel. Escrevo com o carro em movimento. Sob a pressão do celular tocando. Cercada de pessoas falando ao mesmo tempo. Não entendo nada de corte e costura. Mas enfio a linha na agulha, ou melhor, a caneta no papel e pelo menos tento traduzir o que vejo, ouço e sinto.
Cada matéria que vai ao ar é como um filho. Eu pari, e ele partiu. O bom é que no dia seguinte vou engravidar de novo e em poucas horas parir de novo. Ainda não tive filhos de verdade. Dizem que a dor do parto é foda. Tô preparada. Meus seios estão a salvo e poderão amamentar. Eu tenho peito!




* Foto da capa do livro "Histórias Reais" da Sophie Calle