sábado, 3 de março de 2012

Desabafo de repórter



Essa última semana de trabalho foi complicada. Todo jornalista quer noticiar o que chamamos de “factual”. Algo que acontece inesperadamente e que vai ter um impacto para a sociedade, chamar
atenção do leitor, telespectador ou ouvinte. Entendam, não queremos mostrar “desgraça”. Eu pelo menos, não quero. Mas tenho obrigação de deixar as pessoas cientes sobre os fatos. Incêndios, crimes, acidentes... Estes três eu diria que encabeçam a lista de factuais. Se eu esquecer algo, relevem. O blog é uma espécie de catarse escrita. O meu divã. Vocês são meus psicanalistas. Pelo menos neste espaço, não tenho a pretensão de ser muito formal.
O meu domingo começou com um factual dos brabos. Tive que cobrir o velório e o enterro de três pessoas que morreram em acidentes aéreos. A repórter Karla esteve lá sabendo da profissão e da função de cada um. A pessoa Karla, imaginava a dor da mãe, dos filhos, dos amigos.
De alguma forma sempre que vou noticiar que alguém morreu decorrente de acidentes, lembro-me da morte do meu pai. Só pra esclarecer, ele foi um privilegiado. Morreu em casa, no sofá. Vendo novela. Foram cinco minutos de um infarto fulminante. Eu havia falado com ele cinco minutos antes. Cinco minutos depois ele começava a ficar sem cor. Eu já não sentia mais sua respiração. Que sensação de impotência! Que arrependimento pelo o que eu poderia ter dito, do abraço que deveria ter sido mais demorado. Parecia que eu enxergava a alma dele me dando tchau e saindo pela janela. Essa experiência acabou me fazendo mais forte diante de tanta tragédia que presencio no meu trabalho. É mais ou menos assim: “eu já me aproximei do que vocês estão sentindo.” Saber, ninguém sabe. A dor é pessoal e intransferível. É a impressão digital de cada um.
Todo mundo vibra por uma sexta-feira. Ontem eu também acordei com a sensação de “Sexta-feira Uhuu!”. A primeira pauta foi checar um acidente na Almirante Barroso. "Menina de 18 anos
morre atropelada por ônibus na faixa de pedestres."
É hora de ouvir as testemunhas. Correr atrás dos fatos. Cerrar os olhos para não ver o cadáver. Mas sempre escapa algum vestígio e acabo cruzando o olhar com a “notícia” do dia.
É claro, quando acontece esse tipo de coisa com alguém tão jovem, as reações são mais chocantes. O desespero é mais pulsante. Não cabe a mim questionar ou apontar culpados e inocentes. Apenas relatar os fatos e ouvir as pessoas. Depois de uma semana cheia de acidentes, tragédias, notícias ruins enfim, me alimento do ceticismo que protege os repórteres de reações extemporâneas.
Tento dormir sem lembrar os inúmeros semblantes de dor. É a profissão que escolhi e isso não é uma reclamação. Apenas a catarse. Eu precisava desabafar.
Há meses não sonho com meu pai.
Mas todas as vezes que penso na alma dele saindo pela janela, minhas pernas ainda ficam fracas. Naquele dia, eu não tinha um microfone para me proteger.

2 comentários:

TL disse...

Texto claro e transparente. Apesar da produção não trabalhar na rua, também sinto isso quando preciso checar horário de velório, local do enterro, pedir foto para uma pessoa que acabou de perder alguém querido.
Você é ótima. Beijos, Tylla.

Maurílio disse...

Oi Karla, sou professor de jornalismo desde 1988. Hoje leciono telejornalismo e gostaria de dizer que é isso mesmo. Nunca perca seu lado sentimental, emocione-se sim com o que vê. É IMPOSSÍVEL SEPARAR O PROFISSIONAL DO PESSOAL. Não somos máquina, somos seres humanos. Esse sentimento é fundamental para vc exercer bem sua profissão.Precisamos respeitar as pessoas. Abç