segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Da utilidade da poesia


Da utilidade da poesia - Elisa Lucinda

Talvez a poesia seja pioneira no setor de “auto-ajuda”, antes de haver editorialmente este termo. Desde adolescentes colecionamos versinhos de diversos autores em agendas e, muitas vezes, dizemos deles: “Esse verso sou eu! Parece que ele me conhece!”. Outras vezes um verso salva uma pessoa, noutras, muda uma vida ou várias. A poesia sofre de discriminação, preconceito e de desprestígio por parte de livreiros, editores e conseqüentemente do público a quem não é oferecida esta pérola de forma atraente. Ora, se a poesia está na fala das crianças (A lágrima é mágoa da água), nos provérbios populares (Quem não vive para servir não serve para viver / O que a gente leva da vida é a vida que a gente leva), nas cartas dos apaixonados (Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure), nas folhinhas dos calendários (Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas), nas letras de música (Se eu quiser falar com Deus tenho que folgar os nós das gravatas, dos sapatos, dos anseios, tenho que esquecer a data, tenho que perder a conta, tenho que ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus.), nos sermões religiosos (Não diga a Deus o tamanho dos seus problemas, diga aos seus problemas o tamanho do seu Deus). Pois bem, se ela está em toda parte, por que não vende? Por que é considerada menor? Arrisco em dizer que a gênese dessa dificuldade de circulação da poesia esteja no ensino básico onde a criança é apresentada ao poema e o professor (salvo raras exceções) não sabe lê-lo. Vou dar um exemplo no fragmento do poema de Manuel Bandeira:
“Teu corpo de maravilhasquero possuí-lo no leitoestreito da redondilha.”
Infelizmente, algumas vezes pude assistir esses versos sendo lidos dando uma pausa no “leito”, separando bruscamente o adjetivo “estreito” que dá qualidade ao “leito”, se falado junto. Porém, quando os separamos criamos um discurso doido que suspende qualquer entendimento lógico.
Tenho dedicado minha vida à difusão da poesia em todos os meios de comunicação para todos os públicos e idades. Coleciono uma série de exemplos que comprovam, não só a utilidade, mas a necessidade da poesia no mundo; me lembro do ano passado, durante o Fórum de Cultura em Barcelona, quando uma senhora me disse que tinha trocado suas pílulas antidepressivas por uma dose diária do meu espetáculo poético “Parem de falar mal da rotina”. De outra vez uma senhora aluna minha de oitenta anos, Dona Elza, me disse que havia perdido um neto e nem tinha tido espaço pra sofrer por se sentir na obrigação de consolar a filha no seu desespero atroz; certo dia Elza, ao entrar na livraria, abriu, por curiosidade, um livro de Carlos Drummond Andrade e se deparou com um poema que ressignificava o conceito da palavra ausência dizendo que ausência é não uma falta, mas um excesso de presença do objeto amado. De alguma maneira esse pensamento aliviou o coração da avó e curou a depressão da mãe. D’outra vez um jornalista de uma grande revista brasileira me ouviu dizer um poema meu que se chama “Libação”, cujos versos finais mudaram sua vida:
“A vida não tem ensaiomas tem novas chancesViva a burilação eterna, a possibilidadeo esmeril dos dissabores!Abaixo o estéril arrependimentoa duração inútil dos rancoresUm brinde ao que está sempre nas nossas mãos:a vida inédita pela frentee a virgindade dos dias que virão!”
Pois ao ouvir essas palavras, Leôncio refletiu sobre sua carreira e admitiu que se considerava um embuste como jornalista e que poderia viver sendo mais honesto com os seus sonhos. A partir daí e na mesma semana, mesmo indo contra seus familiares, pedira demissão dos seus vinte anos de revista “Veja” e com o dinheiro recebido abriu uma livraria chamada “Esquina da Palavra” que era o seu sonho desde menino e da qual sou madrinha a seu convite; o batizado, eu nem preciso dizer, foi um recital.
Há um poema (Choro à capela) de Adélia Prado que também produz milagres:
“O poder que eu quisera é dominar meu medo.Por esse grande dom troco meu verso, meu dedo,meus anéis e colar.Só meu colo não ponho no machado,porque a vida não é minha.Com um braço só, uma só perna,ou sem os dois de cada um, vivo e canto.Mas com todos e medo, choro tantoque temo dar escândalo a meus irmãos'.
O primeiro milagre (que eu saiba) que esse poema operou foi com uma aluna que o estudou durante um workshop para professores em Recife. Depois que Marina, essa professora simples da escola pública da zona rural pernambucana, disse esse poema de cor, nervosa e emocionada, mas muito bem dito, para uma platéia de mil pessoas que a aplaudiu de pé, recebi uma carta sua que dizia mais ou menos assim:
“Elisa, foi uma experiência maravilhosa esse curso para mim, depois daqueles três dias mágicos estudando um poema mágico e conhecendo outros, passei a ver poesia em tudo: no pão quentinho nas mãozinhas dos meus filhos pela manhã, na alegria dos meus alunos, no vento da tarde, e tirei da minha vida tudo que não é poesia. O primeiro a sair foi meu marido. Obrigada por tudo.”
Depois, em outro workshop no interior do Rio de Janeiro, veio falar comigo uma aluna, Ivone, que nos seus trinta e cinco anos exibia dedos das mãos e dos pés entortados por um processo de artrose cavalar. Pois na hora da escolha de poemas ela se aproximou de mim particularmente e disse que havia me visto dizer um poema na TV e que deu vontade de saber um poema de cor para experimentar da mesma sensação que ela experimentara ao me ver, só que no papel de dizedora. Ivone, no entanto, revelou não saber que poema escolher, uma vez que seu dilema era a triste doença que aleijava sua juventude a passos largos. Ela então me perguntou o que eu faria se estivesse em seu lugar. Respondi que a achava muito corajosa e que se eu tivesse os dedos tortos, a princípio tentaria escondê-los por vergonha. Mas que ela, ao contrário, trazia as unhas muito bem feitas, pintadas de vermelho e os tortos dedos cheios de anéis, e que, além disso, maior defeito físico era o medo, que paralisava pessoas não portadoras de nenhum defeito físico e que, no entanto, não estavam ali, bravamente como ela. Sugeri o “Choro à Capela” e Ivone o abraçou com unhas e dentes e, no segundo dia do curso, voluntariamente, foi a primeira a apresentá-lo, memorizado, emocionando a todos, toda linda de dentro dum vestido colante de oncinha. Ivone casou logo depois com um dos que a viram dizer esse poema nesse dia. Há dois anos fui convidada a jantar com meu grande amigo ator, autor de telenovelas e diretor de teatro, Miguel Falabella. Na ocasião ele me falava que havia perdido o pai que tanto amava e por isso, obviamente estava muito triste. Lembrei-me então de outro poema de Adélia chamado “Leitura”:
Eu sempre sonho que uma coisa gera,nunca nada está morto.O que não parece vivo, aduba.O que parece estático, espera.”
E assim seguiu o nosso jantar “poético”, porque ao final de cada tema de nossas vidas e de nossos assuntos, eu tirava da manga um poema oportuno. Foi quando ele me disse que aquilo exercia nele uma maravilha curativa sem medida e que eu deveria criar postos de “Emergência Poética” pela cidade do Rio de Janeiro, onde moramos, para que as pessoas pudessem apresentar seus problemas e ter a solução prescrita em versos.
Meus amigos, a poesia é uma jóia como gênero e não está abaixo e nem acima de nenhum outro. Tem o poder de ser ambulante, de poder andar no bolso, no coração, na sala de aula, entre amantes, no meio de uma sedução, no meio de uma tese, no meio de uma palestra, num julgamento, num programa de TV, num passeio, num churrasco, numa canção, num teatro, numa festa, e merece atenção e tapetes vermelhos por parte dos profissionais de literatura.


*Texto da jornalista, atriz, cantora e poetisa Elisa Lucinda.

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