segunda-feira, 1 de março de 2010

A vida que todo mundo vê...

Esta é uma tentativa de resgatar a essência do blog. Criei o repórter franjinha em meados de 2008 quando comecei minha carreira na reportagem. Antes meus olhos eram de claustro, presos à rotina da redação, onde muitas vezes boas pautas surgem, mas são originadas de telefonemas, e-mails de assessorias, denúncias e rondas.
Na rua é diferente. Na rua você se aproxima das pessoas e da realidade de cada um. Você enfia o pé na lama, literalmente. Chega a ser emocionante e ao mesmo tempo uma baita responsabilidade a percepção da mudança de olhares sem esperança, quando avistam a equipe de reportagem.
Pois bem, ontem de madrugada fui cumprir uma missão. Mais de 100 barracas de quase 600 camelôs foram retiradas da frente de um shopping Center de Belém. Tá, bom. Os caras deixavam a cidade mais feia e ocupavam quase toda a extensão das calçadas. Ou seja, o pedestre tinha que viver se arriscando pelo meio fio. Por isso quem tomou a dianteira da operação foi a Polícia Rodoviária Federal. Em uma recente pesquisa divulgada até no Jornal Nacional, o trecho que vai do KM 0 ao KM10 da BR-316 e começa em Ananindeua (região metropolitana de Belém) é o campeão no número de acidentes no país.
Estatística cruel, não? Também não gostei de saber que lideramos esse ranking. Mas, a história dos camelôs desemboca em outro problema. Histórias tristes como a do Seu Januário de 54 anos, com seis filhos pra criar e que tinha como única fonte de renda a barraca de balas e chicletes que foi destruída durante a ação desta madrugada.
Fui entrevistar o seu Januário. Ele no início estava arredio, constrangido com a presença dos guardas municipais e suas armas e escudos em punho. O seu Januário repetia aos gritos “Minha mãe me ensinou a trabalhar! Ela não me ensinou a roubar!” Para uma imprensa sensacionalista seria o que chamamos de um belo SOBE SOM para a matéria. Pra mim, coração mole, manteiga derretida e declaradamente fã do jornalismo literário, Seu Januário era mais que personagem de um VT. Era o protagonista de uma lição de vida. O meu incentivo a voltar a escrever neste blog.
Cheguei perto, segurando firme o microfone e travando a mandíbula como sempre faço quando tenho vontade de chorar, e fiz as perguntas triviais para usá-lo na minha matéria, e no final, saiu um “E agora, José?” “E agora, Januário?” Lembrei rapidamente de um xote que fala para um tal Luís, respeitar Januário. Ninguém respeitou seu Januário. Ele respondeu a minha pergunta com a voz embargada, os olhos vermelhos encharcados de lágrimas, que ele não mais pode conter e deixou que escorressem pelo rosto cansado... ”Deus é quem vai saber.” Ele me disse.
Vários ambulantes que assistiam a entrevista aplaudiram seu Januário. Olhei a minha volta e muitos também choravam. A minha vontade era dizer para aquele senhor que em todo o momento olhou fundo nos meus olhos, sem desviar a atenção, que tudo iria ficar bem.
Mas eu não tenho essa resposta. A Secretaria de Economia Municipal também não tem essa resposta. Nos livramos de um problema. Mas para 600 pessoas o mês de março será sinônimo de incerteza. Por enquanto não há nenhum projeto de remanejamento destes vendedores ambulantes, para nenhuma espécie de camelódromo ou shopping popular.
Não sei como foi o almoço ou a janta do Seu Januário hoje. Mas na hora que eu deitar para dormir, posso esquecer de rezar por ele, porque a gente esquece até de quem é da nossa família, mas os olhos de fé e de desespero daquele homem ficarão por muito tempo na minha lembrança.


* O título faz alusão ao livro da Eliane Brum "A vida que ninguém vê" que conta histórias de personagens que ela encontrou na rotina da rua.

2 comentários:

Gláucia Bandeira. disse...

Nossa! Muito emocionante a história do Seu Januário... Ótima postagem!

por Denilson d'Almeida disse...

é Karla, jornalismo tem disso e temos que engolir isto a seco.

gostei muito da postagem!